domingo, 17 de abril de 2022

Resenha de "Carta a minha filha" de Maya Angelou

 

 

 

ANGELOU, Maya. Carta a Minha Filha; tradução Celina Portocarrero; [prefácio Conceição Evaristo]. Rio de Janeiro: Agir, 2019. Tradução de: Letter to my daughter

  

Carta a minha filha é mais um dos fascinantes escritos autobiográficos de Maya Angelou, estadunidense, ativista dos direitos civis dos negros, autora de diversos livros como o best seller Eu sei por que o pássaro canta na gaiola (Primeira de uma série de autobiografias, publicada pela primeira vez em 1969 e no Brasil, em 2018). Carta a minha filha (Letter to my daughter) foi publicado em 2008 nos EUA, seis anos antes de seu falecimento, e chega até nós em 2019, na publicação da editora Agir. Está em sua segunda edição, enriquecida pelo prefácio inédito de Conceição Evaristo, texto que nos brinda com uma fecunda aproximação entre as tradições afro-brasileira e afro-americana, como na valorização das experiências dos mais velhos e também na importância do afeto na construção de redes de confiança responsáveis pela sobrevivência ao racismo: “Nas narrativas que compõem o livro, a autora, como figura mais velha, tão valorizadas nas culturas africanas e nas afro-diaspóricas, podia ser a relembrança de sua avó, Annie Henderson, e de sua mãe, Vivian Baxter, quando essa envelheceu também”. (Convocação à ternura, prefácio de Conceição Evaristo, p. 12.)

Angelou é dona de uma prosa cheia de lirismo e humor, capaz de contar fatos os mais difíceis e traumáticos, “sem perder a ternura”, como pontua Evaristo. O título do livro seduz – e não apenas o título – a autora domina a arte narrativa e nos prende em busca do desfecho em certas histórias contadas. Histórias onde, muitas vezes, a mãe é a heroína, como em “Acaso, coincidência ou preces atendidas” (pp. 35-41).

Como dizíamos, o título brinca com o gênero epistolar e biográfico, onde esperamos encontrar uma carta à filha de Maya Angelou, conforme sugere o pronome possessivo antes da palavra filha. Brinca, talvez, com o gênero da autobiografia e suas revelações bombásticas a atiçar a curiosidade de suas leitoras. Será que Maya tem uma filha que não foi criada por ela? Quem será esta filha?

No livro nos deparamos uma escrita ampliada, onde os gêneros líricos e narrativo se misturam, transitando entre a crônica, as memórias, a poesia, mas fundamentalmente como escritos éticos ou de formação – e daí o título Carta à minha filha. (Numa referência talvez a textos clássicos latinos, escritos por e para homens, como Cartas a Lucílio, de Sêneca.) Uma grata surpresa, então, descobrirmos a quem está endereçada carta, a filha que ela nunca teve (conta no livro sobre o nascimento do filho e as transformações que a maternidade provocara nela), ela encontra em cada uma de nós, suas leitoras, a quem deseja transmitir seus aprendizados e sabedoria de vida, com toda a franqueza de que velhos e crianças são capazes:

Estou convencida de que a maioria das pessoas não cresce. Encontramos vaga no estacionamento e pagamos nossos cartões de crédito. Casamos e ousamos ter filhos, e chamamos isso de crescer. Acho que o que fazemos é, na maioria das vezes, envelhecer. Levamos o acúmulo dos anos em nossos corpos e nossos rostos, mas, em geral, nosso verdadeiro eu, a criança interior, ainda é inocente e tímido como as magnólias. (p. 19.)

 

Trata-se, portanto, de uma leitura leve e inspiradora, pontuada por histórias de dor e trauma provocados pelo racismo e patriarcalismo, e por memórias das referências de Maya, da linhagem feminina da família. Também encontramos capítulos com certo tom de conselho da vovó, reclamando que não é nada cool não nos arrumarmos direito e que nossa roupa não está bem passada (“Dizer a verdade”) e outros mais ousados, sobre necessidade de autodefesa. E ainda certas máximas bem humoradas da autora, como “tente ser um arco-íris na nuvem de alguém” ou “se não puder mudar algo, mude a maneira como pensa”.

A força dos escritos autobiográficos de Maya Angelou está justamente nessa mudança de pensamento que é atualizada por meio das histórias, como ela mesma diz, ela mostra as condições em que experimentou a mudança, o que torna qualquer máxima bem diferente de uma mera frase solta num livro de autoajuda. O paradigma desta mudança está no evento traumático narrado em Eu sei porque o pássaro canta na gaiola, onde ela conta como emudeceu por anos a fio, durante a infância e adolescência.  E de como a leitura e a literatura, apresentadas por uma amiga de sua avó, quando ela vivia com esta no Arkansas, foram fundamentais na mudança dessa linha de vida.

De emudecida, sua voz passou a reverberar pelo mundo, tendo ela atuado como atriz, dançarina e cantora em musicais de sucesso. O título deste livro traz ainda referência forte ao canto, ao lamento, referência aos coros e hinos gospel, dimensão da religião cristã, muito presente nas reflexões da autora também em Carta a minha filha, em suas memórias sobre a avó paterna com quem viveu quando criança.

Assim, os escritos de Maya Angelou e, particularmente, Carta a minha filha, que evoca o gênero epistolar onde a relação de si para consigo passa por uma relação com outrem, são capazes de provocar transformações e reflexões profundas, especialmente no campo das relações raciais e de gênero que nos constituem. São escritos, como disse Michel Foucault em A Hermenêutica do Sujeito, etopoéticos: “Ethopoieîn, quer dizer: fazer o êthos, produzir o êthos, modificar, transformar o êthos, a maneira de ser, o modo de existência de um indivíduo. É êthopoiós aquilo que tem a qualidade de transformar o modo de ser de um indivíduo.” (Foucault, 2010, p. 212). Ao transformar em literatura as transformações pelas quais passou em sua vida, Maya Angelou nos faz uma oferenda e nos encoraja a estarmos à altura das questões que enfrentamos hoje.

 

Referências

 

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Curso dado no Collège de France (1981-1982). São Paulo: Martins Fontes, 2010.

SÊNECA. Aprendendo a Viver. São Paulo: L&PM, 2008.

 

 

 

domingo, 9 de janeiro de 2022

Microhabitat


Microhabitat é um filme coreano de 2017 passando na MUBI, a protagonista é Miso, uma jovem linda que não abre mão de cigarros e whisky e nem de seus princípios, na fria Seul. Como os coreanos amam cigarros!  Mas o custo de vida não pára de aumentar e Miso, que é faxineira, passa a dormir em cafés, lavanderias e na casa de amigos, para poder bancar seus pequenos prazeres. Os amigos com os quais ela se hospeda são classe média, todos meio vendidos, meio pirados. Enfim, parece uma história boba, mas na simplicidade e na forma de contá-la é que reside o encanto deste filme crítico, que mostra a resistência da Bodisatva Miso aos lugares já destinados a ela e sua recusa em ocupá-los. Um traço de identificação com os brasileiros é a famosa cartela com trinta ovos que ela sempre leva para presentear seus anfitriões. Uma das boas descobertas do final de 2021 que levo para 2022, o cinema coreano.