ANGELOU,
Maya. Carta a Minha Filha; tradução Celina Portocarrero; [prefácio Conceição
Evaristo]. Rio de Janeiro: Agir, 2019. Tradução de: Letter to my daughter
Carta a minha filha
é mais um dos fascinantes escritos autobiográficos de Maya Angelou, estadunidense,
ativista dos direitos civis dos negros, autora de diversos livros como o best seller Eu sei por que o pássaro canta
na gaiola (Primeira de uma série de autobiografias, publicada pela primeira
vez em 1969 e no Brasil, em 2018). Carta
a minha filha (Letter to my daughter)
foi publicado em 2008 nos EUA, seis anos antes de seu falecimento, e chega até
nós em 2019, na publicação da editora Agir. Está em sua segunda edição,
enriquecida pelo prefácio inédito de Conceição Evaristo, texto que nos brinda
com uma fecunda aproximação entre as tradições afro-brasileira e afro-americana,
como na valorização das experiências dos mais velhos e também na importância do
afeto na construção de redes de confiança responsáveis pela sobrevivência ao
racismo: “Nas narrativas que compõem o livro, a autora, como figura mais velha,
tão valorizadas nas culturas africanas e nas afro-diaspóricas, podia ser a relembrança
de sua avó, Annie Henderson, e de sua mãe, Vivian Baxter, quando essa
envelheceu também”. (Convocação à ternura,
prefácio de Conceição Evaristo, p. 12.)
Angelou
é dona de uma prosa cheia de lirismo e humor, capaz de contar fatos os mais
difíceis e traumáticos, “sem perder a ternura”, como pontua Evaristo. O título
do livro seduz – e não apenas o título – a autora domina a arte narrativa e nos
prende em busca do desfecho em certas histórias contadas. Histórias onde,
muitas vezes, a mãe é a heroína, como em “Acaso, coincidência ou preces
atendidas” (pp. 35-41).
Como
dizíamos, o título brinca com o gênero epistolar e biográfico, onde esperamos
encontrar uma carta à filha de Maya Angelou, conforme sugere o pronome possessivo
antes da palavra filha. Brinca, talvez, com o gênero da autobiografia e suas
revelações bombásticas a atiçar a curiosidade de suas leitoras. Será que Maya
tem uma filha que não foi criada por ela? Quem será esta filha?
No
livro nos deparamos uma escrita ampliada, onde os gêneros líricos e narrativo
se misturam, transitando entre a crônica, as memórias, a poesia, mas
fundamentalmente como escritos éticos ou de formação – e daí o título Carta à minha filha. (Numa referência
talvez a textos clássicos latinos, escritos por e para homens, como Cartas a
Lucílio, de Sêneca.) Uma grata surpresa, então, descobrirmos a quem está
endereçada carta, a filha que ela nunca teve (conta no livro sobre o nascimento
do filho e as transformações que a maternidade provocara nela), ela encontra em
cada uma de nós, suas leitoras, a quem deseja transmitir seus aprendizados e
sabedoria de vida, com toda a franqueza de que velhos e crianças são capazes:
Estou convencida
de que a maioria das pessoas não cresce. Encontramos vaga no estacionamento e
pagamos nossos cartões de crédito. Casamos e ousamos ter filhos, e chamamos
isso de crescer. Acho que o que fazemos é, na maioria das vezes, envelhecer.
Levamos o acúmulo dos anos em nossos corpos e nossos rostos, mas, em geral,
nosso verdadeiro eu, a criança interior, ainda é inocente e tímido como as
magnólias. (p. 19.)
Trata-se,
portanto, de uma leitura leve e inspiradora, pontuada por histórias de dor e
trauma provocados pelo racismo e patriarcalismo, e por memórias das referências
de Maya, da linhagem feminina da família. Também encontramos capítulos com
certo tom de conselho da vovó, reclamando que não é nada cool não nos arrumarmos direito e que nossa roupa não está bem
passada (“Dizer a verdade”) e outros mais ousados, sobre necessidade de
autodefesa. E ainda certas máximas bem humoradas da autora, como “tente ser um
arco-íris na nuvem de alguém” ou “se não puder mudar algo, mude a maneira como
pensa”.
A
força dos escritos autobiográficos de Maya Angelou está justamente nessa
mudança de pensamento que é atualizada por meio das histórias, como ela mesma
diz, ela mostra as condições em que
experimentou a mudança, o que torna qualquer máxima bem diferente de uma mera
frase solta num livro de autoajuda. O paradigma desta mudança está no evento
traumático narrado em Eu sei porque o pássaro canta na gaiola,
onde ela conta como emudeceu por anos a fio, durante a infância e adolescência. E de como a leitura e a literatura,
apresentadas por uma amiga de sua avó, quando ela vivia com esta no Arkansas,
foram fundamentais na mudança dessa linha de vida.
De
emudecida, sua voz passou a reverberar pelo mundo, tendo ela atuado como atriz,
dançarina e cantora em musicais de sucesso. O título deste livro traz ainda
referência forte ao canto, ao lamento, referência aos coros e hinos gospel, dimensão
da religião cristã, muito presente nas reflexões da autora também em Carta a minha filha, em suas memórias
sobre a avó paterna com quem viveu quando criança.
Assim,
os escritos de Maya Angelou e, particularmente, Carta a minha filha, que evoca o gênero epistolar onde a relação de
si para consigo passa por uma relação com outrem, são capazes de provocar
transformações e reflexões profundas, especialmente no campo das relações
raciais e de gênero que nos constituem. São escritos, como disse Michel
Foucault em A Hermenêutica do Sujeito,
etopoéticos: “Ethopoieîn, quer dizer: fazer o êthos, produzir o êthos, modificar, transformar o êthos, a maneira de ser, o modo de
existência de um indivíduo. É êthopoiós aquilo que tem a qualidade
de transformar o modo de ser de um indivíduo.” (Foucault, 2010, p. 212). Ao
transformar em literatura as transformações pelas quais passou em sua vida,
Maya Angelou nos faz uma oferenda e
nos encoraja a estarmos à altura das questões que enfrentamos hoje.
Referências
FOUCAULT,
Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Curso dado no Collège de France (1981-1982).
São Paulo: Martins Fontes, 2010.
SÊNECA.
Aprendendo a Viver. São Paulo: L&PM, 2008.